Introdução
Gótico: apenas uma palavra
Ao longo dos anos, o termo gótico foi usado como adjetivo e classificação de várias expressões artísticas, estéticas e comportamentais. Mas, em sua maioria, estas classificações não possuem nenhuma relação com o significado primitivo da palavra.
O termo Gótico, que originalmente significa apenas relativo a Godos ou proveniente deles, foi usado a partir do início da Renascença, para designar de forma depreciativa a produção cultural ocorrida entre os séculos XII e XV e posteriormente de toda Idade Média, a qual foi associado o conceito de Idade das Trevas, em oposição à nova Idade da Razão ou da Luz: o Iluminismo (XVII e XVIII). Mas nos séculos XVIII e XIX, por exemplo, gótico foi associado ao período medieval e aplicado à Literatura. Além disso, o termo Goticismo tem origem inglesa, Gothicism, e relaciona-se apenas à Literatura.
Em 1979 o termo gótico já foi utilizado para designar o movimento sócio-cultural que se constituía e se consolidaria poucos anos depois. Mas, a subcultura gótica/darkwave não possui nenhuma relação com os Godos, como a própria "arte gótica" (entre os séculos XII e XV) não possui. Portanto, em uma de suas primeiras aplicações, a palavra Gótico já foi usada com um sentido que não corresponde ao original, e torna-se nítida a diversidade de significados que esta palavra traz em si.
A subcultura Gótica/Darkwave
A subcultura gótica (relacionada a Darkwave a ponto de ser assim chamada por alguns) como conhecemos atualmente, é um contexto artístico e comportamental que inclui literatura, música, cinema, artes plásticas e vestuário (entre outros), de forma que um elemento enriqueça o outro e multiplique-se.
Pode-se dizer que sua origem ocorreu nos primeiros anos da década de 1980, mas suas influências iniciam-se no Romantismo do século XIX e passam pelo Modernismo, com o Impressionismo, Expressionismo e Surrealismo e Cabaret Culture, do século seguinte. Porém, a Geração Beatnick, inspirada na boêmia moderna, filosófica e artística francesa a partir de 1950 e posteriormente pelos escritores Beats dos Estados Unidos, é a influência mais recente e significativa da subcultura gótica/darkwave.
No final da década de 60, os beatnicks se diluíram e formaram ramificações como o movimento Punk e Glam da década de 70. A música de artistas como David Bowie e Velvet Underground, referências do Glam e do Punk, trouxeram vários elementos da cultura beatnick, como a prosa e a poesia. Dessa forma, o Glam e o Punk foram influenciados pela Cultura Beatnick, mas também foram determinantes nas características da subcultura gótica.
Mas todas essas tendências que influenciaram e compuseram a subcultura gótica, desde o Romantismo até as mais recentes, são apropriações e releituras através de abordagens distintas, muitas vezes, de forma alegórica e metafórica. As transições entre uma e outra, ocorrem sem rompimentos bruscos, de forma que as tendências posteriores resgatam elementos primitivos e somam-se aos seguintes.
É importante salientar que os fatores que definem uma corrente artística, filosófica ou apenas comportamental, não são apenas os temas adotados, mas principalmente a abordagem, ou a forma como os temas são trabalhados e expostos.
A subcultura gótica/darkwave, não se baseia apenas em alguns temas específicos, mas principalmente, em uma abordagem própria. Para que possamos compreender com mais clareza as características principais que compõem a subcultura gótica, desde o uso do termo gótico até as influências culturais e comportamentais mais presentes, é necessário recapitular alguns pontos.
Cinema
No cinema alemão o expressionismo encontrou sua tradução para as massas. Os filmes O gabinete do Dr. Caligari (1920) e Nosferatu (1922), inspirado no livroDrácula de Bram Stoker (1897), Metrópolis (1927) eDrácula (1932, com Bela Lugosi no papel principal) são símbolos do expressionismo. Ainda no cinema, na década de 40 surgiu o Cinema Noir.
Baseado em Literatura policial, Cinema Noir tem como principais características detetives astutos, policiais inflexíveis, damas sensuais e vilões perversos, envolvidos em investigações e tramas conspiratórias. Outro elemento importante do Cinema Noir é a ambientação das tramas, que ocorre geralmente nas metrópoles americanas, envolvidas em uma atmosfera de sombras e mistério. Como nos filmes expressionistas, a fotografia em preto e branco ressalta este clima soturno.
A expressão Nouvelle Vague, criada pela escritora Françoise Giroud, surge na revista francesaL''Express em 1958, inicialmente, para designar um fenômeno contestatório dos movimentos artísticos. Porém, esta expressão viria fixar-se para definir o movimento cinematográfico francês que surge nesta mesma época.
Influenciada pelo neo-realismo italiano e por diretores norte-americanos como Alfred Hitchcock, John Ford e Howard Hawks, a Nouvelle Vague recria a linguagem cinematográfica e aborda essencialmente questões existencialistas, praticamente abandonando temas corriqueiros como política e sociedade. Ainda, traz como uma de suas propostas técnicas, a reação aos aspectos convencionais do cinema, principalmente, a narrativa. Nesse contexto, enquadram-se também obras de baixo orçamento com equipes reduzidas e filmagens em locais públicos.
Essas características influenciaram toda a cinematografia mundial, inclusive o cinema novo brasileiro. Jean-Luc Godard e François Truffaut são as maiores referências da Nouvelle Vague francesa. Algumas das principais obras da fase inicial da Nouvelle Vague são Acossado (de Godard), Os Incompreendidos e Jules et Jim, (François Truffaut), Hiroshima, Mon Amour (Resnais - 1959), Paris Nos Pertence (J. Rivette - 1960) e Trinta Anos Esta Noite (Louis Malle – 1963).
O sueco Ingmar Bergman também teve papel significativo. Entre seus filmes, destacam-se O Sétimo Selo (1956), onde um homem aposta sua vida jogando xadrez com a morte; Morangos Selvagens (1957), Persona (1966), Gritos e Sussurros (1972), e O Ovo da Serpente (1976), entre outros de intensa densidade dramática.
Hippie, Glam e Punk – Intersecções até a Subcultura Gótica
A origem do termo Hippie está associada ao escritor Norman Mailer que definiu o existencialismo dos beats americanos como "Hipster" em 1957. Fatores políticos, econômicos e sociais fizeram dos hippies um grupo de estética multicolorida e comportamento politizado. Os estereótipos e a "filosofia" dos Beatnicks e dos Hippies são um tanto distintas. Mas há uma linha que une esses dois grupos. Naturalmente, a geração Beatnick adotou outras influências no decorrer dos anos, e em 1967 a cultura Beatnick dos Estados Unidos se diluiu em Hippie, Glam-Punk e Punk-Beat, sendo que estas duas últimas, são em grande parte o mesmo movimento.
Enquanto isso, o escritor canadense Leonard Cohen abandona sua vida literária e aventura-se na música. Seu álbum de estréia, Songs of Leonard Cohen, influenciaria artistas como The Sisters of Mercy e Nick Cave.
Paralelamente na Alemanha, em meados da década de 60, surgia do experimentalismo um estilo conhecido como Krautrock, baseado numa combinação psicodélica com improvisação do Jazz e sintetizadores que produziam uma sonoridade eletrônica, de classificação musical complexa, mas que expôs a Alemanha no cenário Pop/Rock europeu. Mais tarde, o Krautrock foi uma das principais influências das tendências da música eletrônica, como o Sith - Pop e EBM.
No início da década de 70, o Punk nova-iorquino, do Club CBGB, cultivava características comuns aos beats. Numa visita à cidade, Malcolm McLaren, dono de uma Sex Shop em Londres, resolveu levar a "ideologia" Punk para a Inglaterra e reuniu um grupo de adolescentes, freqüentadores de sua loja, criando o Sex Pistols. O "punk britânico", que emergiu para sociedade e a mídia entre 1976 e 1977, concebido por Malcom, era intencionalmente exagerado se comparado ao original, de Richard Hell e sua Blank Generation.
Ainda em 1970, surge o Glam-Rock e o Glam-Punk que influenciariam o Gótico do final desta década. Em Nova York, a banda The New York Dolls é a referência. Na Inglaterra, Marc Bolan, T-Rex e David Bowie tornam-se ícones desta tendência. Em 1974, David Bowie lança o álbum conceitual Diamond Dogs, que aborda o romance 1984 de George Orwell. Diamond Dogs foi definido pelo próprio Bowie como Gothic, em alusão a um espírito dramático e barroco do século XX. Bowie ainda produziu álbuns solos de Iggy Pop, ex–The Stooges, que influenciariam posteriormente, os vocais de Peter Murphy do Bauhaus. Em 1977 a banda Nova-Iorquina Suicide, lança seu primeiro álbum que mistura música eletrônica e punk obscuro.
Enquanto isso o Rock passa da fase "adolescente" e as bandas The Doors e The Velvet Underground surgem na cena em 1967. O prédio, conhecido com Factory, alugado pelo pintor Andy Warhol abriga vanguardistas de várias expressões e torna-se uma referência cultural e o principal reduto de criação do Velvet Underground. O vocalista e guitarrista da banda, Lou Reed, foi fortemente influenciado pelo amigo e "guru pessoal", Delmore Schwartz, escritor americano, chegando a dedicar várias músicas ao autor.
Quando Lou une-se ao músico erudito John Cale, sua pretensão é compor letras no estilo da Literatura Beatnick associada ao instrumental de Rock experimental. Patty Smith também traz referências semelhantes a partir de seu disco de estréia, Horses (1975). Enquanto isso, Jim Morrison, também influenciado pela prosa beat e William Blake, traça ao lado de Ray Manzareck uma trilha semelhante às intenções da dupla Lou Reed e John Cale. O experimentalismo musical e a forte presença da cultura beat são determinantes na subcultura glam/punk/krautrock que foi influência direta da cultura gótica/darkwave que se formaria a seguir.
Os módulos da subcultura gótica
Em 1972, o filme musical Cabaret, com Liza Minelli, com sua estética de cabaré e decadência berlinense do início da década de 30, influenciou em 1976 um grupo de Londrinos importantes: O Bromley Contingent, que incluía Siouxsie Sioux, Sue Catwoman, Debbie Juvenile, Philip Salon, John Richie (Sid Vicious), Berlin, Steve Severin e Billy Idol. A estética Cabaret é reciclada e chega ao Gótico.
No final da década de 70, o termo Gótico torna-se "sinônimo" de irracional, imaginativo, ou"que ousa penetrar nas trevas da mente e terrível condição humana", como havia sido usado na Inglaterra. Porém, até os primeiros anos de 1980, os termos Gótico/Goth e Positive-Punk são usados para descrever o mesmo movimento.
Esse período, ainda classificado como pós-punk, traz uma certa indefinição musical devido às diversas influências agregadas pelas bandas que surgiam. Outros ascendentes do Punk partiam para uma sonoridade mais experimental e foram classificadas como New Wave. Ainda nesse mesmo contexto, mas na Inglaterra, surge o New-Romantic e o No Wave. De 1979 a 1983, algumas bandas pós-punk seriam chamadas de Góticas, outras não. Posteriormente, bandas de outros estilos musicais também seriam chamadas de Góticas.
O movimento New-Romantic consistia numa versão mais suave e comercial da New Wave americana. A sonoridade trazia influências de Soul, Funk, Disco e Punk com sintetizadores e baterias eletrônicas. Depeche Mode, David Bowie e Duran Duran eram as maiores expressões do movimento, que contava ainda com o surgimento da MTV americana, que teve grande participação na divulgação dos clipes das bandas. Porém, o New-Romantic não possui uma relação direta como o Romantismo e suas releituras anteriores, mas também compõe parte da base cultural que estava se desenvolvendo.
Um pouco antes, com o uso de temas niilistas, timbres graves das guitarras e linhas de baixo, a No Wave utilizava-se também de microfonia e outros sons que interferissem na construção comum da música. Nesse momento, o Industrial também já estava se estruturando.
Ainda neste período, sob as novas perspectivas da Revolução Sexual e o impasse da Guerra Fria, além da música, o cinema também influenciava na moda e no comportamento. Foi neste período, aproximadamente 1979 a 1983, que a subcultura gótica/darkwave aglutinou elementos da Geração Beatnick, Punk, pós-Punk, Glam, New-Romantic e No Wave, entre outros. Esta combinação de tendências e a consolidação que viria a seguir ocorreram principalmente na Inglaterra. Mas no mesmo período bandas como Cristian Death, Misfits e TuxedoMoon já estão em atividade nos Estados Unidos.
Arquétipos no cinema 80/90
Em 1982, o filme Blade Runner (de Ridley Scott), que aborda o conflito entre seres humanos e andróides humanizados nas primeiras décadas do século XXI, reafirmou as tendências futuristas de estilo e vestuário. No filme The Hunger (Fome de Viver) de 1983, David Bowie e Catherine Deneuve representam um casal de vampiros em busca de sangue. Há uma cena em que a dupla, usando Ankhs egípcios, está à espreita de suas presas numa casa noturna ao som de Bela Lugosi’s Dead, tocada pelo próprio Bauhaus. Há ainda o filme alemão produzido em 1987,Der Himmel ünder Berlin (de Win Wenders, lançado também com os títulos Wings of Desire ou Asas do Desejo), dois anjosperambulam pela Berlim dividida do pós-guerra, confortando a tristeza dos cidadãos, até que um dos anjos apaixona-se e deseja tornar-se humano.
Estes três filmes abrigam arquétipos que seriam reconhecidos, nos anos seguintes, como alguns dos elementos que comporiam a subcultura Gótica. Em Blade Runner, há a figura do andróide sensível, humanizado e conflitante num cenário urbano decadente. The Hunger inclui num mesmo contexto David Bowie (ícone do Glam da década 70), a banda Bauhaus (principalmente Peter Murphy) e a figura do Vampiro com a simbologia do Ankh, e aborda a questão da mortalidade humana. Em Asas do Desejo, há um conflito "razão x paixão" com abordagem decadente e existencialista dos anjos em meio aos cidadãos comuns.
Nos anos 90, a refilmagem de Drácula de Bram Stoker (1992), feita por Coppola se torna uma nova referência. Também em 1994, Entrevista com o Vampiro, o livro escrito em 1976 por Anne Rice se torna filme, retomando questões existenciais do molde de The Hunger, de 1983.
A consolidação
O termo Gothic, usado pela mídia e adotado por algumas bandas, prevalece a partir de 1983/84 e as bases da subcultura, tanto na música como no comportamento e visual, já estão concretizadas. O club londrino Batcave (Batcaverna) é inaugurado em 1982 e funciona como um catalisador das tendências emergentes. Na Batcave, além de Specimen, Bauhaus, Alien Sex Fiend e Siouxsie Sioux, reúnem-se personalidades como Nick Cave (The Bithday Party) e Robert Smith (The Cure). De Londres para a Alemanha, bandas como X-Mal Deutschland, Einsturzende Neubauten e Malaria são essenciais.
Nos anos seguintes, até o final da década de 80, a música da subcultura gótica/darkwave vê emergir novos artistas influenciados, principalmente, pelas bandas do período pós-Punk. Neste momento, The Sisters of Mercy, The Mission, Christian Death e outros, estabelecem "padrões" que seriam seguidos. Mas também surgem "sub-estilos" que ampliam a diversidade musical da cena. A sonoridade inclui influências do Pop e música eletrônica. Bandas que produzem estilos que seriam depois classificados como Darkwave e Ethereal, já estão em atividade, como Cocteau Twins(1980/81), Dead Can Dance (1981), Trisomie 21 (1982) e Opera Multi Steel (1983/84).
Entre Góticos assumidos e simpatizantes, alguns nomes incontornáveis do período 1979 a 1986 são: Bauhaus, UKDecay, The Damned, Siouxsie and The Banshees, The Cure, Echo and The Bunnymen, Soft Cell, Southern Death Cult, X-Mal, Einsturzende Neubauten, Malaria, Love and Rockets, Alien Sex Fiend, Sex Gang Children e Specimen. Ainda podemos citar, Joy Division, The Smiths, Nick Cave and The Bad Seeds, Virgin Prunes, The Fields Of Nephillin, The Jesus and Mary Chain, Cabaret Voltaire, Cocteau Twins, Trisomie 21, Opera Multi Steel, Clan of Xymox, Poesie Noire, e inúmeros outros, sem aqui nos aprofundarmos nas importantes tendências, Industrial, Sinth e EBM, ligadas a esta cena.
A partir da década de 90
Nos anos 90 podemos citar como referências musicais do Gótico e Darkwave, bandas comoLondon After Midnight, Switchblade Symphony, Faith and Muse, Das Ich, Sopor Aeternus, Inkubus Sukubbus, Bella Morte, Nosferatu, Cranes, Diary of Dreams, Cruxshadows, Lycia, Wolfsheim, Clan of Xymox, Project Pitchfork, Love Spirals Downwards, entre tantas outras.
Na passagem para o século XXI esta geração dos anos 90 já é acompanhada por uma nova safra de bandas como The Vanishing, The Ghost of Lemora, Collide, Diva Destruction, Voltaire, Audra, Qntal, Cinema Strange, BlutEngel, The 69 Eyes, The Last Days of Jesus, Diorama, Chants of Maldoror, Hatesex, Android Lust, Ego Likeness, Paralised Age, Thou Shalt Not, In Strict Confi- dence, Eisbrecher, citando apenas algumas bandas em estilos distintos da subcultura gótica, pois a lista é muito maior.
Ainda, subgêneros musicais como o Trip-Goth e Dark Ambient, estão emergindo e se transformando. A cena da subcultura gótica/darkwave já conta com clubes (casas noturnas), eventos, uma intensa produção cultural (não apenas musical) e a interação dos seus adeptos, que é uma de suas molas propulsoras.
Atualmente, percebe-se que a subcultura gótica não apenas se estabilizou em sólidas bases culturais, mas também continua sendo cultivada, ampliando-se em todas as partes do mundo. Há um verdadeiro circuito cultural que não se baseia apenas na música e no comportamento, mas em todas as outras expressões artísticas que cada gótico possa criar, recriar e renovar.